Tic-Tac



          Ao passo do instante, que se move numa dança vertiginosa, e com esse rodopio, lento e eterno, da terra, todos esses arranjos complexos de carbono e água, como eu e você, andam por aí atarefados com alguma coisa que julgam ser vital, baforando seus problemas num circo, onde aquele que tiver a história mais triste pra contar é considerado o melhor dos palhaços. Triste vida a do homem que, para não aceitar sua condição de vagabundo, sem dever algum no mundo, à não ser aproveitar o tempo, cria situações problemáticas pra se entreter, e depois canta ao mundo que tem sofrido as pencas com esses problemas, e isso o satisfaz.
          E assim vão girando os ponteiros, e o tempo continua no mesmo passo firme, sempre. Ah, o tempo; Essa lixa! Tudo apodrece e se desgasta com o atrito com o tempo, inclusive o relógio, e seus ponteiros. Passam-se anos, décadas, morrem homens aos milhares, lutando em guerras que não são suas, movidos por um patriotismo imbecil, que surge da manipulação em massa desde à infância, e morrem também, como um cara que conheci, afogados com uma ervilha. E mesmo assim, engasgando-nos com ervilhas, achamos que somos especiais e que temos algum tipo de dignidade.
          Aceite sua condição de inútil, não ache que o mundo vai sentir sua falta. O tempo é o senhor de tudo, deixa você escrever sua história na areia da praia mas, na mesma noite, com uma onda sutíl, ele te apaga. Seja lá qual tenha sido o tamanho de sua obra. É assim, o papel é maior que a sua letra, e a borracha também.
          Enquanto escrevo estou vivendo, e morrendo, ao mesmo tempo. Nunca estive tão perto da morte quanto estou agora, como alguém já disse. Tudo, desde de o seu corpo até o que você comprou na liquidação e o que ganhou de natal, tudo será devolvido ao universo do jeito que veio, em pedaços, em átomos e moléculas, carbono e água, quando assim o tempo quiser. Sua vida é o que acontece entre o tic e o tac.
Quais mãos te moldaram?


          Sou de argila, não sou nada. Mas é exatamente na minha condição de nada que está o potencial pra ser tudo. Qualquer coisa! Que mãos vão me dar forma? Vou ser vaso de flor, ou cinzeiro de bar? Queria eu mesmo me moldar, mas não sei. Ao menos, não agora. Talvez um dia eu saiba, mas aí o barro já vai estar seco, e vão haver uns trincos aqui e ali... Afinal as mãos que moldam são as mesmas que te derrubam de cima da mesa e te fazem em cacos. Mas são, também, as mesmas que te colam.
          Sou a pureza, sou a água da chuva que subiu purificada e, agora, volta leve, em gotas, do céu pra virar rio. Mas já posso sentir o tempo chegando à passos lentos, com um pincel em uma mão e uma lata de óleo escuro na outra, pronto para sentar-se confortavelmente às minhas margens e ficar ali, molhando o pincél no óleo, e respingando em mim, sem a menor pressa. Talvez pra me admirar e não perceber o quanto a àgua vai apodrecer e ficar escura. Mas no fim virá o sol, pra me tirar do lodo, e me levar às nuvens de novo.
          Sou a criança, aquela que nasce sem medo, e sente tudo intensamente. Aquela que chora quando tem fome, e que consegue dormir ao som de qualquer canção boba e mal cantada. Aquela que se agarra ao peito da mãe, com toda a pouca força que tem, enquanto mama. Aquela que não sabe o que à aguarda no futuro, e não se preocupa com isso. Aquela que não vive para satisfazer o ego, não aje pelo impulso da ganância, da inveja ou da vaidade, aje porque vive, lindamente, mesmo sem saber se está vivendo ou se está sonhando.
Sonho é destino – Parte XVI

- Foi no deserto, no meio do nada, a caminho de Las Vegas... Sabe, de tempos em tempos, um carro parava para abastecer. Era o último posto antes de Las Vegas. Havia uma cadeira e uma caixa registradora. Não cabia mais nada. Eu estava dormindo e ouvi um barulho. Sabe, como se fosse na minha cabeça. Então eu me levantei... Andei até lá fora e fiquei parado na beirada… Onde o posto de gasolina acaba. Sabe, na entrada de carros. Esfreguei meus olhos, tentando enxergar o que estava havendo. E lá longe, do outro lado do posto, havia uns pneus enfileirados… Presos com correntes. E percebo que há uma van Econoline lá perto. E um cara sem camisa. E ele está carregando a van Econoline… Com todos aqueles pneus. Ele está com os dois últimos pneus nas mãos. Ele os empurra para dentro da van. E eu, é claro, digo: “Ei, você!” O cara então se vira. Ele está sem camisa. Está suando. Forte como um armário. Saca uma faca de 3 centímetros… Eu penso… “Isto está errado.” Eu entrei… Enfiei a mão atrás do caixa, onde o dono guardava um revólver 41. Eu saquei a arma… Destravei-a… E quando me virei, ele estava entrando pela porta. Eu vi seus olhos. Nunca esquecerei os olhos daquele cara. Ele tinha maus pensamentos a meu respeito em seus olhos. Disparei uma vez e acertei nele... boom! Bem no peito. Bang! Tão rápido quanto ele entrou pela porta, ele saiu. Foi parar entre as duas bombas, comum e aditivada. Devia estar drogado, com anfetaminas ou algo assim, pois ficou de pé. Ele ainda estava com a faca e havia sangue cobrindo o seu peito todo. Ele se levantou e fez isso, só se mexeu um pouco. Fiquei chocado. Então, segurei o gatilho, bati no tambor, como antigamente… E o lancei para fora do posto. Desde então, eu sempre carrego isto. Uma população bem armada é a melhor defesa contra a tirania.
- Um brinde a isso.
- Sabe, não uso isto há muito tempo, nem sei se ainda funciona.
- Puxe o gatilho e descubra.

Fonte: Waking Life (2001)

Sonho é destino – Parte XV

- O que está escrevendo?
- Um romance.
- Qual é a história?
- Não há história. São só pessoas, gestos, momentos, fragmentos de sensações, emoções evanescentes... Em resumo: As maiores histórias já contadas.
- Você está na história?
- Acho que não. Mas estou meio que lendo-a para depois escrevê-la.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte XIV

Existem dois tipos de sofredores: Aqueles que sofrem da falta de vida, e os que sofrem da abundância excessiva da vida. Eu sempre me posicionei na segunda categoria. Quando se pensa nisso, quase todo comportamento e atividade humana são, essencialmente, nada diferentes do comportamento animal. As mais avançadas tecnologias e artefatos levam-nos, no máximo ao nível do super-chimpanzé. Na verdade, o hiato entre Platão ou Nietzsche e o humano mediano é maior do que o que há entre o chimpanzé e o humano mediano. O reino do verdadeiro espírito, o artista verdadeiro, o santo, o filósofo, é raramente alcançado. Por que tão poucos? Por que a História e a evolução não são histórias de progresso, mas uma interminável e fútil adição de zeros? Nenhum valor maior se desenvolveu. Ora, os gregos, há 3.000 anos, eram tão avançados quanto somos hoje. Quais são as barreiras que impedem as pessoas de alcançarem, minimamente, o seu verdadeiro potencial? A resposta a isso pode ser encontrada em outra pergunta, que é: qual é a característica humana mais universal? O medo, ou a preguiça?

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte XIII

A dúvida tornou-se a nossa narrativa. A nossa busca era a de uma nova história, a nossa. Nos agarramos a esta nova história graças à suspeita de que a linguagem comum não poderia contá-la. Nosso passado parecia congelado, à distância e, cada gesto nosso significava a negação do velho mundo e a tentativa de alcançar o novo. O modo como vivíamos criou uma situação de exuberância e amizade. Uma micro sociedade subversiva no coração de uma sociedade ignorante. A arte não era a meta, mas a ocasião e o meio de localizarmos nosso ritmo, e as possibilidades enterradas de nossa época. Tratava-se da verdadeira descoberta da comunicação. Ou a busca disso. Encontrá-la e perdê-la. Nós, os inquietos, continuamos procurando, preenchendo o silêncio com desejos, temores, fantasias. Movidos pelo fato de que, ainda que o mundo parecesse vazio, ainda que parecesse degradado e desgastado, qualquer coisa seria possível. Dadas as circunstâncias certas um mundo novo era tão provável quanto um antigo.

Fonte: Waking Life (2001)

Sonho é destino – Parte XII

- Dissolve-se em partículas ligeiras que giram. Ora me movo rapidamente, ora o tempo o faz. Nunca os dois simultaneamente. É um estranho paradoxo. Estou mais perto do fim da minha vida do que jamais estive, mas sinto, mais do que nunca, que tenho todo o tempo do mundo. Quando era mais jovem, havia necessidade de certeza. Eu precisava chegar ao fim do caminho.
- Sei o que quer dizer. Eu me lembro que pensava: "Um dia, aos 30 e poucos anos, talvez tudo irá, de algum modo, se acomodar, parar. Simplesmente acabar." É como se houvesse um platô me esperando. Eu estava escalando. Quando eu chegasse ao topo, todo crescimento e toda mudança parariam. Até a excitação cessaria. Mas isso não aconteceu, ainda bem.
- Na juventude, não levamos em conta a nossa curiosidade. Isso é que é incrível de sermos humanos. Sabe o que Benedict Anderson diz sobre a identidade? Ele fala sobre, digamos, uma foto de bebê. Você pega uma imagem bidimensional e diz: "Sou eu". Para ligar o bebê dessa imagem estranha a você, no presente, é preciso criar uma história. "Esta sou eu quando tinha 1 ano. Depois, tive cabelos compridos, e depois nos mudamos para Riverdale, e aqui estou." Então, a história necessária é, na verdade, uma ficção, para tornar você e o bebê idênticos. Para criar sua identidade.
- O engraçado é que nossas células se regeneram totalmente a cada sete anos.Já fomos várias pessoas diferentes. E, no entanto, sempre permanecemos sendo, em essência, nós mesmos.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte XI

O personagem principal é o que chamo de "a mente". Sua mestria, sua capacidade de representação. Historicamente, muito se tentou conter experiências que ocorrem à beira do limite nas quais a mente está vulnerável. Mas creio que estamos em um momento muito significativo da História. Esses momentos, que poderíamos chamar de limítrofes, fronteiriços, experiências de Zona X, hoje, tornam-se a norma. Essas multiplicidades e distinções transmitem diferenças, gerando grande dificuldade à velha mente. E, entrando através de sua essência mesma, saboreando e sentindo a sua singularidade pode-se avançar na direção daquela coisa comum que os mantém unidos. Então o personagem principal é, para essa nova mente, maior, uma mente maior. Uma mente que ainda virá a ser. E quando entra-se neste registro pode-se ver uma subjetividade radical. Afinação radical à individualidade, à singularidade, à mente. Ela abre-se para uma vasta objetividade. Então, agora, a história é a do Cosmos. O momento não é apenas um vazio passageiro, um nada. Ainda assim é a forma pela qual estas passagens secretas ocorrem. Sim, é vazio de tamanha completude que o grande momento, a grande vida do universo pulsa em seu interior. E cada um, cada objeto, cada lugar, cada ato, deixa uma marca. E esta história é singular. Mas, na verdade, é uma história após a outra.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte X

O desafio é o de nos libertarmos do negativo que nada mais é do que nossa própria vontade do nada. Uma vez tendo dito sim ao instante, a afirmação é contagiosa. Ela explode numa cadeia de afirmações que não conhece limites. Dizer sim a um instante é dizer sim a toda a existência.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte IX

"Não se pode nada contra o Estado." "Morte e impostos. " "Não fale sobre política ou religião." Isto é equivalente à propaganda inimiga. Renda-se, soldado! Renda-se, soldado! Vimos isso no século 20. Agora, no século 21, precisamos enxergar que não podemos ficar encurralados neste labirinto.Não devemos nos submeter à desumanização! Me preocupa o que está acontecendo neste mundo. Me preocupa a estrutura, os sistemas de controle. Os que controlam a minha vida e os que querem controlá-la ainda mais. Eu quero liberdade! E é isso que você devia querer! Cabe a cada um de nós deixar de lado a ganância, o ódio, a inveja, as inseguranças, seu modo de controle. Nos sentimos patéticos, pequenos, e abrimos mão, voluntariamente, da soberania, da liberdade e do destino. Precisamos nos conscientizar de que somos condicionados em massa. Desafie o Estado escravo das corporações! O século 21 é um novo século. Não é um século de escravidão, de mentiras e questões irrelevantes, de classicismo, estadismo e outras modalidades de controle. Será a era em que a humanidade defenderá algo puro e correto. Que monte de lixo. Democratas liberais, republicanos conservadores. Dois lados da mesma moeda! Duas equipes gerenciais brigando pelo cargo máximo da Escravidão Ltda.! A verdade está lá, mas eles estendem um bufê de mentiras. Estou farto! E não aceito nem mais um quinhão! A resistência não é fútil! Nós venceremos! A humanidade é boa demais. Não somos fracassados! Nos ergueremos e seremos humanos! Nos empolgaremos com coisas reais! A criatividade e o espírito humano dinâmico que recusa-se a submeter-se! Bem, isso é tudo o que tenho a dizer. Está nas suas mãos.

Fonte: Waking Life (2001) 
Sonho é destino – Parte VIII

Na visão de mundo atual, a Ciência tomou o lugar de Deus mas alguns problemas filosóficos ainda nos perturbam. Livre-arbítrio, por exemplo. Esse problema está na praça desde Aristóteles, em 350 a.C. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino questionavam "como sermos livres se Deus já sabe tudo o que iremos fazer?" Hoje, sabemos que o mundo é regido por leis físicas fundamentais. Essas leis regem o comportamento de cada objeto do mundo. Como essas leis são confiáveis, elas viabilizam avanços tecnológicos. Nós somos sistemas físicos. Arranjos complexos de carbono e de água.Nosso comportamento não é exceção a essas leis. Logo, se é Deus programando isto de antemão e sabendo de tudo ou se são leis físicas nos governando, não há muito espaço para a liberdade. Pode-se querer ignorar o mistério do livre-arbítrio. Dizer: "É uma anedota histórica, uma inconsistência. É uma pergunta sem resposta. Esqueça isso." Mas a pergunta permanece. Quanto a individualidade, quem você é se baseia nas livres escolhas que faz. Ou pelas quais se responsabiliza. Só se é responsabilizado, ou admirado, ou respeitado pelas coisas que se faz pela própria escolha. A pergunta retorna sem cessar e não temos uma solução. Decisões podem parecer charadas. Imagine só. Há atividade elétrica no cérebro. Os neurônios disparam enviando um sinal através dos nervos até os músculos. Estes se contraem. mas cada parte desse processo é governada por leis físicas, químicas, elétricas etc. Parece que o Big Bang causou as condições iniciais e todo o resto da História humana é a reação de partículas subatômicas às leis básicas da física. Nós achamos que somos especiais, que temos alguma dignidade. Isso agora está ameaçado. Está sendo desafiado por este quadro. Você pode dizer: "E quanto à mecânica quântica? Conheço o bastante para saber que é uma teoria probabilística. É frouxa, não é determinista. Permite entender o livre-arbítrio." Mas, se olharmos detalhadamente, isso não ajudará porque há as partículas quânticas e o seu comportamento é aleatório. Elas são meio transgressoras. Seu comportamento é absurdo e imprevisível. Não podemos estudá-lo com base no que ocorreu antes. Ele tem um enquadre probabilístico. Será a liberdade apenas uma questão de probabilidade? Aleatoriedade em um sistema caótico? Eu prefiro ser uma engrenagem em uma máquina física e determinista que uma transgressão aleatória. Não podemos ignorar o problema. Temos que incluir pessoas nesta perspectiva. Não apenas corpos, mas pessoas. Há a questão da liberdade, espaço para escolha, responsabilidade, e para entender a individualidade. 

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte VII

Pegarei vocês, seus putos, nem que seja meu último ato. Vocês pagarão pelo que fizeram comigo. Por cada segundo que eu passar neste buraco do inferno farei com que passem um ano vivendo no inferno! Vocês me implorarão para que eu os deixe morrer. Mas não, ainda não. Quero que vocês sofram, seus escrotos! Vou enrabá-los. Ou talvez enfie uma agulha comprida em seus ouvidos. Ou um charuto quente em seus olhos. Nada sofisticado. Um pouco de chumbo quente em seus rabos? Ou, ainda melhor, aquela coisa dos Apaches. Cortarei suas pálpebras. Apenas ouvirei vocês gritando, seus putos. Que doce melodia será essa. Faremos tudo no hospital, com médicos e enfermeiras, para que vocês não morram rápido demais. Sabem qual é a melhor parte? A melhor parte é que vocês, veados, terão as pálpebras cortadas, para que tenham que me assistir fazendo isso a vocês. Me verão aproximar cada vez mais o charuto dos seus olhos arregalados, até que estejam quase enlouquecendo. Mas não exatamente. Quero que dure muito, muito tempo. Quero que saibam que sou eu! Sou eu quem estou lhes fazendo isso. Eu! Aquele psiquiatra frutinha, que ignorância incorrigível! E aquele velho juiz bêbado babaca. Que bundão arrogante! Não julgues para não seres julgado! Todos vocês vão morrer, seus merdas, no dia em que eu sair deste bueiro. Eu lhes garanto que se arrependerão de terem me conhecido!

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte VI

- Não me sai da cabeça algo que você me disse.
- Algo que eu disse?
- É. Sobre a sensação de que você observa a sua vida da perspectiva de uma velha à beira da morte. Lembra? Ainda me sinto assim, às vezes. Como se visse minha vida atrás de mim. Como se minha vida desperta fossem lembranças.
- Exatamente. Ouvi dizer que Tim Leary, quando estava morrendo, disse que olhava para seu corpo que estava morto, mas seu cérebro estava vivo. Aqueles 6 a 12 minutos de atividade cerebral depois que tudo se apaga. Um segundo nos sonhos é infinitamente mais longo do que na vida desperta. Entende?
- Claro. Tipo, eu acordo às 10:12h. Então, eu volto a dormir e tenho sonhos longos, complexos, que parecem durar horas. Aí eu acordo e são 10:13h.
- Exato. Então aqueles 6 a 12 minutos de atividade cerebral podem ser a sua vida inteira. Você é aquela velha, olhando para trás e vendo tudo.
- Se eu sou, o que você seria nisso?
- O que eu sou agora. Quero dizer, talvez eu só exista na sua mente. Eu sou apenas tão real quanto qualquer outra coisa.
- Andei pensando sobre algo que você disse. Sobre reencarnação, e de onde todas as novas almas vêm ao longo do tempo. Todo mundo sempre diz ser a reencarnação de Cleópatra ou de Alexandre, o Grande. Não passam de bestas quadradas, como todo mundo. Quer dizer, é impossível. A população mundial duplicou nos últimos 40 anos. Então, se você acredita nessa história egóica de ter uma alma eterna há 50% de chance da sua alma ter mais de 40 anos. Para que ela tenha mais de 150 anos, é uma chance em seis.
- Está dizendo que reencarnação não existe? Ou somos todos almas jovens? Metade de nós é de humanos de primeira viagem? O que você está...?
- Quero dizer...
- Aonde você quer chegar?
- Eu acredito que a reencarnação é uma expressão poética do que é a memória coletiva. Eu li um artigo de um bioquímico, não faz muito tempo.Ele dizia que, quando um membro de uma espécie nasce ele tem um bilhão de anos de memória para usar. É assim que herdamos nossos instintos.
- Eu gosto disso. É como se houvesse uma ordem telepática da qual nós fazemos parte, conscientes ou não. Isso explicaria os saltos aparentemente espontâneos, universais e inovadores na ciência e na arte. Como os mesmos resultados surgindo em toda parte, independentemente, sabe? Tipo, um cara num computador descobre algo e, simultaneamente várias outras pessoas descobrem a mesma coisa... Houve um estudo em que isolaram um grupo por um tempo e monitoraram suas habilidades em fazer palavras cruzadas em relação à população em geral. Então, deram-lhes um jogo da véspera, que as pessoas já tinham respondido. A sua pontuação subiu dramaticamente. Tipo 20%. É como se, uma vez que as respostas estão no ar, pudessem ser pescadas. É como se estivéssemos partilhando nossas experiências telepaticamente.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino – Parte V

O homem autodestrutivo sente-se totalmente alienado e solitário. Ele é um excluído da comunidade. Ele diz para si mesmo: "Eu devo estar louco". O que ele não percebe é que a sociedade, assim como ele próprio, tem um interesse em perdas consideráveis, em catástrofes. Guerras, fome e enchentes atendem a necessidades bem-definidas. O homem quer o caos. Na verdade, ele precisa disso. Depressão, conflitos, badernas, assassinatos. Toda essa miséria. Somos atraídos a esse estado, quase orgiástico, gerado pela destruição. Está em todos nós. Nos deliciamos com isso. A mídia forja um quadro triste, pintando-as como tragédias humanas. Mas a função da mídia não é a de eliminar os males do mundo. Ela nos induz a aceitar esses males e a nos acostumarmos a viver com eles. O sistema quer que sejamos observadores passivos. Eles não nos deram qualquer outra opção, à exceção do ato, participativo ocasional e puramente simbólico, do voto. “Você prefere o fantoche da direita ou o fantoche da esquerda?” É chegado o momento de eu projetar minhas inadequações e insatisfações nos esquemas sociopolítico e científico. Deixar que minha própria falta de voz seja ouvida.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte IV

          Estuda-se o desenvolvimento humano pela evolução do organismo e sua interação ambiental. A evolução do organismo começa com a evolução através do hominídeo até a evolução do homem, o Neanderthal, o Cro-Magnon. Ora, o que temos aqui são três eixos: O biológico, o antropológico, o desenvolvimento das culturas, ou cultural, que é a expressão humana. O que se viu foi a evolução de populações, não de indivíduos. Pense na escala temporal em questão. A vida tem dois bilhões de anos, o hominídeo, seis milhões. A humanidade, como a conhecemos hoje, tem 100 mil anos. Percebe como o paradigma evolutivo vai se estreitando? Quando se pensa na agricultura, na revolução científica e industrial são apenas 10 mil anos, 400 anos, 150 anos. Vê-se um estreitamento crescente da temporalidade evolutiva. À medida em que entramos na nova evolução ela se estreitará ao ponto em que a veremos no curso de uma vida.
          Há dois novos eixos evolutivos, vindos de dois tipos de informação: O digital e o analógico. O digital é a inteligência artificial. O analógico resulta da biologia molecular e da clonagem. Une-se os dois com a neurobiologia. Sob o antigo paradigma, um morreria, o outro dominaria. Sob o novo paradigma, eles existem como um grupamento cooperativo e não-competitivo, independente do meio externo. Assim, a evolução torna-se um processo individualmente centrado emanando do indivíduo, não um processo passivo onde o indivíduo está sujeito ao coletivo. Produz-se, então, um neo-humano com uma nova individualidade, uma nova consciência. Esse é apenas o começo do ciclo. À medida que ele se desenvolve, a fonte é esta nova inteligência. Enquanto as inteligências e as habilidades se sobrepõem a velocidade muda até atingir-se um crescendo. Imagine, uma realização instantânea do potencial humano e neo-humano. Isso pode ser a amplificação do indivíduo, a multiplicação de existências individuais paralelas onde o indivíduo não mais estaria restrito pelo tempo e pelo espaço. E estas manifestações desta neo-humana evolução poderiam ser dramaticamente imprevisíveis.
          A antiga evolução é fria, é estéril. É eficiente. Suas manifestações são aquelas da adaptação social. Trata-se de parasitismo, dominação, moralidade guerra, predação. Essas coisas ficarão sujeitas à falta de ênfase e de evolução. O novo paradigma nos daria as marcas da verdade, da lealdade, da justiça e da liberdade. Estas seriam as manifestações desta evolução. Isso é o que nós esperamos.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte III

A criação vem da imperfeição. Parece ter vindo de um anseio e de uma frustração. É daí, eu acho, que veio a linguagem. Quero dizer, veio do nosso desejo de transcender o nosso isolamento e de estabelecer ligações uns com os outros. Devia ser fácil quando era só uma questão de mera sobrevivência. "Água". Criamos um som para isso. "Tigre atrás de você!" Criamos um som para isso. Mas fica realmente interessante, eu acho, quando usamos esse mesmo sistema de símbolos para comunicar tudo de abstrato e intangível que vivenciamos. O que é "frustração"? Ou o que é "raiva" ou "amor"? Quando eu digo "amor" o som sai da minha boca e atinge o ouvido de outra pessoa viaja através de um canal labiríntico em seu cérebro, através das memórias de amor, ou de falta de amor. O outro diz que compreende, mas como sei disso? As palavras são inertes. São apenas símbolos. Estão mortas. Sabe? E tanto da nossa experiência é intangível. E, ainda assim, quando nos comunicamos uns com os outros e sentimos ter feito uma ligação, e termos sido compreendidos, acho que temos uma sensação quase como uma comunhão espiritual. Essa sensação pode ser transitória, mas é para isso que vivemos.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte II

Me recuso a ver o Existencialismo como apenas mais um modismo ou uma curiosidade histórica, porque ele tem algo importante a oferecer no novo século. Acho que estamos perdendo as virtudes de vivermos apaixonadamente, de assumirmos a responsabilidade por quem somos, de tentarmos realizar algo e nos sentirmos bem em relação à vida. O Existencialismo é, às vezes, visto como uma filosofia do desespero, mas eu penso que ele é o contrário. Sartre disse, certa vez, que nunca teve um dia de desespero em sua vida. O que esses pensadores nos ensinam é a exuberância das sensações. Como se sua vida fosse a sua obra a ser criada. Eu li os pós-modernos com interesse, com admiração até. Mas sempre tenho uma péssima e incômoda sensação de que algo essencial está sendo deixado de fora. Quanto mais se fala sobre o ser humano como um construtor social ou uma confluência de forças ou como fragmentado, ou marginalizado, abre-se todo um novo universo de desculpas. Quando Sartre fala de responsabilidade, não é abstrato. Não se trata do tipo de eu ou de alma de que falam os teólogos. É algo concreto. Somos nós, falando, tomando decisões e assumindo as conseqüências. Há seis bilhões de pessoas no mundo, é verdade. No entanto, suas ações fazem diferença. Servem de exemplo. A mensagem é: não devemos jamais nos eximir e nos vermos como vítimas de várias forças. Quem nós somos é sempre uma decisão nossa.

Fonte: Waking Life (2001)
Sonho é destino - Parte I

- Alto lá, marujo! Precisa de uma carona?
- Estava esperando um táxi, mas...
- Está bem. Está preparado para pegar o caminho mais longo? Não perca o barco.
- Sim. Obrigado.
- Não há de quê.
- Içar âncoras! O que acha do meu barco? Ele vale pela vista. V-I-S-T-A. Para se ver com os olhos. Meu meio de transporte deve refletir a minha personalidade. Voilà! Esta é a minha janela para o mundo. A cada minuto, um novo espetáculo. Posso não compreendê-lo ou concordar com ele... Mas eu o aceito e acompanho a maré. Siga com a corrente. O mar jamais rejeita um rio. A idéia é manter-se em um estado de partida, mesmo ao chegar. Economiza-se em apresentações e em despedidas. A viagem não requer explicações, apenas passageiros. É aí que entra você. É como se chegássemos ao planeta com uma caixa de lápis de cera. Pode-se ganhar a caixa de 8, ou a de 16... Mas o segredo é o que você faz com eles e as cores que lhe foram dadas. Não se preocupe em colorir somente dentro das linhas. Pinte por fora das linhas e fora da página! Não queira me limitar! Nos movemos com o oceano. Não estamos ancorados! Onde vai quere descer?
- Quem, eu? Não sei.
- Apenas me dê um endereço, alguma coisa, está bem?
- Qualquer lugar está bom ...
- Vou fazer o seguinte: Vou subir mais três ruas. Virar à direita. Mais 2 quarteirões. E deixá-lo na próxima esquina.
- Onde é isso?
- Não sei, mas é algum lugar. E determinará o desenrolar do resto de sua vida. Hora de desembarcar!

Fonte: Waking Life (2001)
Aceite os limites.
Tudo é limite.
Veja bem, não disse que tudo é limitado, embora seja, mas sim que tudo é limite.
A própria palavra limite é limitada, e também limite de si mesma.
É limitada quanto aos significados que transmite, embora possam eles ser centenas, viajando entre definições técnicas e contextualizações lúdicas, a palavra limite é limitada; E é, também, limite de si mesma no sentido de que não pode ser outra coisa, senão, limite.
Sendo assim, e assumindo como coerente a teoria de que tudo é limite, a palavra tudo também é limitada, ou seja, tudo abrange absolutamente tudo o que se conhece sobre tudo, o que parece óbvio e infantil ao se afirmar.
Mas veja bem, tudo o que se conhece não é tudo o que existe, certo?
O tudo absoluto, que faz parte de tudo o que é, ainda, mistério para a mente humana encontra-se fora do contexto do tudo limite, e sempre encontrar-se-a fora deste, pois apartir do momento em que se adquire o conhecimento sobre algo antes desconhecido, isto já chega à você limitado nele mesmo.

"Seu corpo é seu limite.
É, talvez, o maior dos seus limites.
É o limitador do espírito."